sábado, 22 de novembro de 2014

Não mais do que 30 horas.Atualmente tramita no congresso um projeto de lei que limita a carga horária do psicólogo. nada mais justo, nada mais necessário

Muitos alunos, em vias de começar sua prática clínica, perguntam-se sobre os ossos deste ofício. Receber uma pessoa, acolher aquela forma de vida como única, entrar em sua linguagem própria, seguir suas razões de ser e de não ser, acolher seu sofrimento. Dizer algo diante do impossível, calar-se diante de tantos possíveis. Finalmente, colocar algo a mais e tirar algo que está demais desta combinação contingente entre comédia, drama e tragédia. E depois de tudo... outro paciente. Somos feitos de carne, mas temos que viver como se fossemos de ferro, dizia Freud. A pergunta aqui é que até mesmo o ferro tem uma densidade, uma resiliência e uma elasticidade limitada. Depois disso ele quebra.
Quando me perguntam como um psicanalista aguenta fazer isso oito ou dez horas por dia, eu costumo responder: jamais conseguiria em meus primeiros, digamos assim, dez anos de clínica. E nunca conseguiria se não fizesse também alguma outra coisa da vida. Ligar, desligar e religar; distância, proximidade e corte. Tudo isso ao mesmo tempo e separado. Manter alguma reserva, queimar todas as reservas, até aquelas que você desconhecia possuir. Pode ser que naquele dia nada aconteça, mas na outra manhã vem um desencontro, um suspiro fora de hora, uma lembrança inofensiva de um paciente, e isso quebra em cheio uma destas quinas insuspeitas de nossa alma. E aí dói. E quando parar de doer, aposente-se. A diferença entre um clínico experiente e um iniciante é que o primeiro recupera-se mais rápido. Como dizia Hegel: “o espírito é o osso”. 
Atualmente tramita no congresso um projeto de lei (PL-338;08) que limita o trabalho do psicólogo ao máximo de 30 horas. Nada mais justo, nada mais necessário. Até aqui o sistema tem sido desleal com psicólogos, e com outros profissionais de saúde que trabalham emprestando sua pessoa, suas palavras ou seu juízo mais íntimo, em atenção e cuidado aos outros. Sabemos que um dos traços típicos do sofrimento sob a forma de vida neo-liberal é a exploração do tempo e do empenho, fora de hora e fora de contrato, e ainda assim “livremente”. Quem trabalha por projeto ou por ficha entregue, sempre terá a tentação de dar algo a mais de si, para fechar o mês. Do outro lado, quem paga por serviço, sempre estará inclinado a pagar um pouco menos por um pouco mais.
A expressão “ossos do ofício” vem da antiga prática de quebrar ossos, extrair-lhes o tutano, que possui propriedades alvejantes, e com isso embranquecer o papel sobre o qual se pode escrever. E isso toma tempo. Tempo não suprimível e nem incurtável do processo. Tempo de cura do próprio clínico e de prevenção dos efeitos iatrogênicos de sua prática. Tempo de análise, de supervisão e de reanálise. Tempo no qual temos que escrever e pensar sobre nossos próprios ossos quebrados pela clínica, para que a página em branco reapareça uma vez mais.
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Fonte: Revista Mente & Cérebro

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