sábado, 11 de outubro de 2014

Médico detalha tratamento que curou pacientes com Ebola

No final de agosto, dois americanos [um médico e uma missionária] que contraíram o
 Ebola enquanto trabalhavam na África ocidental receberam alta de um hospital nos
Estados Unidos e  foram declarados  “recuperados”. Eles haviam sido levados de avião
da Libéria para o  Hospital Universitário Emory, em Atlanta, no início de agosto para receber
atendimento em sua  unidade especializada  em doenças  infecciosas.
Kent Brantly, médico do grupo humanitário Samaritan’s Purse, e a missionária
 Nancy Writebol, da SIM USA, venceram a cepa do vírus que haviam contraído e que
mata 52% de suas vítimas.
 Bruce Ribner, médico-diretor da Unidade de Doenças Infecciosas do hospital, conversou
com a Scientific  American  para explicar como os dois foram atendidos, que lições
 poderiam ser aplicadas na África para ajudar  seus pacientes no continente e por
que a histeria gerada por levar os dois americanos  de volta aos  Estados Unidos
 foi infundada.

Brantly e Writebol agora estão imunes à cepa zairense do Ebola?

Em geral, pacientes que se recuperam da infecção por Ebola desenvolvem uma imunidade
muito robusta ao vírus. Eles criam anticorpos contra o patógeno e também desenvolvem
uma imunidade mediada por  células, chamadas linfócitos, tão importantes para formar
um controle de agentes patogênicos virais. 
Em geral, a conclusão é que a pessoa está imunizada — seria anormal ter uma infecção
com a mesma cepa.

Essa imunidade os protegerá contra outras cepas de Ebola?

Ainda estamos avaliando isso em nossos dois pacientes. A proteção cruzada
 não  é tão robusta. 
Existem cinco cepas do vírus Ebola. Embora não existam muitos dados
sobre isso,  a impressão é de que há um potencial de ser infectado se você
for para outra parte da África e for exposto a uma linhagem diferente.

O senhor disse “ainda avaliando”. Vocês ainda estão cuidando de Brantly e 
Writebol?

Acompanharemos esses dois pacientes em ambulatório, e como parte de nossa
avaliação eles concordaram em se submeter a testes adicionais para que possamos
compreender  melhor a imunidade ao vírus Ebola. Estamos nos reunindo com
eles periodicamente.

Que tipos de lições o hospital Emory aprendeu ao tratar dessas 
duas  pessoas que poderiam ser transferíveis aos pacientes na 
África Ocidental?

Não estamos criticando nossos colegas na África ocidental. Eles sofrem de
uma terrível falta de infraestrutura e não dispõe dos tipos de testes que
todo mundo em nossa sociedade considera garantidos, como a possibilidade
de fazer um hemograma completo, com contagem de glóbulos vermelhos,
glóbulos brancos e plaquetas, o que é feito como parte de qualquer check-up
padrão aqui. A instalação na Libéria, onde nossos dois pacientes estavam internados
nem sequer tinham esse procedimento tão simples, que todo mundo presume
como parte de seu exame físico anual.

De modo geral, o que constatamos em nossos pacientes com Ebola é que
devido à quantidade de líquido que eles perderam através de diarreia e vômitos
eles tinham muitas anomalias eletrolíticas. 
Portanto, uma reposição com fluidos padrão [utilizados em hospitais] sem
monitoramento não terá um resultado muito satisfatório para repor substâncias
como sódio e potássio.

Constatamos que nos dois pacientes esses níveis eram muito baixos.
Uma das mensagens que enviaremos aos nossos colegas na África é que mesmo
que eles não tenham o equipamento para medir esses níveis, eles devem estar
cientes de que isso está ocorrendo quando pacientes estão perdendo muito
fluido corporal.
Nossos dois pacientes também acumularam uma quantidade enorme de
líquido em seus tecidos, o que chamamos edema.
Na doença provocada pelo vírus Ebola ocorrem danos ao fígado e ele se  torna
incapaz de produzir quantidades suficientes de proteína; o nível de proteínas
[responsáveis pela  retenção de líquidos]  no sangue  fica extremamente baixo
e ocorre um enorme extravasamento de  fluidos para os tecidos. 
Portanto, uma das mensagens é prestar mais atenção a isso e talvez tentar logo
no início do tratamento  fazer a resposição dessas proteínas que o fígado dos pacientes
não está produzindo.

Considerando o quanto os recursos são limitados em algumas dessas 
instalações africanas,  os profissionais de saúde realmente poderiam 
tomar alguma medida quanto a essa informação?

Acredito que o mundo está se conscientizando de que problemas como esse
não desaparecerão. 
Os países desenvolvidos do mundo terão que fazer sua parte para ajudar colegas
que dispõem de infraestrutura menos sofisticadas para cuidar de pessoas
doentes.
Acredito que uma das indicações que chegam de várias fontes é que realmente temos
que ajudar países afetados neste surto a aperfeiçoar a infraestrutura médica. 
Esperemos que daqui a cinco anos eles tenham essa base indispensável.

O senhor disse que está ajudando a desenvolver novas diretrizes de cuidados 
para o Ebola com base em sua experiência. Como elas  serão divulgadas?

Submetemos vários artigos às principais publicações científicas médicas, que são lidas
no exterior, com essas recomendações. Estamos trabalhando com várias agências
governamentais, incluindo o Departamento de Estado americano, para ajudá-los a divulgar
as lições aprendidas; diretrizes que esses órgãos distribuirão para outros países.
É nosso objetivo ajudar nossos colegas no exterior.

Quais foram as lições o senhor aprendeu com esses profissionais de saúde?

Principalmente a evolução clínica dos pacientes, como qualquer médico que envia um
paciente a um  centro de referência. Eles admitiram estar cientes de que estavam praticamente
agindo às cegas e diziam: “é isso o que observamos, mas não tínhamos meios de fazer os testes
necessários”.

A Organização Mundial da Saúde afirma que pacientes podem continuar 
infecciosos  através de seus fluidos sexuais durante vários meses após 
a recuperação. O que o senhor recomendou a Brantly e Writebol?

Existem dados que remontam a várias décadas, referentes a vários outros surtos,
sugerindo que pessoas que se recuperaram da infecção pelo vírus Ebola ainda podem
liberar material genético do vírus [e potencialmente ajudar a disseminá-lo] através do
sêmen em homens e de secreções vaginais em mulheres; e também, potencialmente,
na urina.
Essas conclusões derivam de testes que observaram especificamente o material
genético do vírus. 
Houve poucos esforços para demonstrar se o vírus que essas pessoas estão liberando
é viável [ou seja, capaz de se invadir o corpo de outras pessoas e provocar a doença].
Quando se avaliam investigações epidemiológicas é importante notar que ninguém 
foi capaz de mostrar que as pessoas que estão liberando material genético do vírus
são uma fonte de infecção após receberem alta.
Considerando os sobreviventes de Ebola que receberam alta e combateram com
sucesso a infecção, nunca houve qualquer evidência em exames de acompanhamento
vários meses depois  e avaliações de seus familiares, de que membros de suas famílias
tivessem sido infectados.
Atualmente, acredita-se em grande parte que isso [o material genético] não estava vivo
e não é importante em termos de controle de infecção. Demos aos nossos dois pacientes
as recomendações padrão, que constam no site do CDC [US Centers for Disease Control]
na internet — que é não praticar sexo sem proteção durante três meses.

Quantos médicos e enfermeiros estavam em sua equipe cuidando desses dois
pacientes com  Ebola?

Vinte e um enfermeiros, cinco médicos e tivemos o apoio de centenas de pessoas.
Só para garantir que  todos os materiais descartáveis que saíam daqueles quartos fossem
esterilizados antes de serem colocados no sistema rodoviário federal, por exemplo, tivemos
que comprovar que ele não continha o vírus Ebola ativo para a empresa terceirizada,
encarregada de levar nosso lixo hospitalar regulamentado.
Não tínhamos o equipamento para lidar com todos aqueles resíduos, mas em apenas duas
horas outras instalações trouxeram autoclaves industriais [que esterilizam materiais
contaminados com calor extremo] para substituir o sistema que tínhamos. Sem esses
 aparelhos teríamos nos afogado no lixo.

Foi divulgado que Brantly recebeu uma transfusão de sangue de um paciente 
recuperado. 
Que papel isso pode ter tido e isso está sendo tentado em outros contextos?

Eu não posso dizer o que li em sua ficha médica. A coisa mais precisa a dizer é que não
temos a menor ideia [sobre que papel uma transfusão de sangue poderia ter].
Em nosso país isso não faz parte do tratamento padrão. Não teríamos a menor ideia se
ele se beneficiou disso ou se foi prejudicial.

Os atuais diagnósticos para identificar a doença provocada pelo vírus Ebola
são adequados   para esse surto?

Certamente, nos Estados Unidos eles são adequados.
A principal forma com que diagnosticaríamos uma infecção por Ebola é através de
um processo chamado PCR ou reação em cadeia da polimerase, em que se coloca o
sangue do paciente em uma máquina que lhe dirá em poucas horas se o material
genético do vírus Ebola está presente.
O CDC está fazendo isso com pacientes que retornam de áreas infectadas, pessoas
potencialmente 
portadoras do vírus.
Há diversos laboratórios, tanto locais como cortesias do CDC, que estão realizando
esse teste no oeste da África, e minha impressão é que ele não é tão difícil de ser feito.

Na última semana de agosto, a OMS anunciou que um de seus funcionários foi 
infectado com o vírus Ebola e essa pessoa teve a opção de ser enviada para 
outro país para tratamento. Uma enfermeira britânica também contraiu o vírus
e retornou ao Reino Unidos para ser tratada. 
Qual é a vantagem de ser tratado em outro lugar?

Como não há tratamento para a doença do vírus Ebola, a principal intervenção que
determinará se alguém vive ou morre dessa infecção são cuidados de suporte:
a capacidade de repor fluidos e eletrólitos se um paciente os estiver perdendo.
A capacidade de repor plaquetas se sua contagem estiver baixa e um paciente
começar a sangrar. Além disso, a capacidade de repor proteínas no sangue,
que podem estar deficientes. Um país desenvolvido tem essas possibilidades porque
nossa infraestrutura para oferecer esse nível de suporte está em um nível muito mais
elevado que um hospital  que está lidando com pacientes na África ocidental.

Entre os poucos pacientes que receberam a droga experimental ZMapp 
alguns morreram. Considerando que a taxa de mortalidade para a atual 
cepa de Ebola é de quase 50%, o que  podemos dizer sobre o ZMapp?

Drogas experimentais são experimentais justamente porque não sabemos se
elas funcionarão. Isso vale tanto para os medicamentos ministrados a pacientes
na Libéria como para outras substâncias que estão sendo consideradas para o
tratamento de pessoas infectadas.
Estamos muito longe de poder afirmar que alguém que tenha recebido um desses
agentes tenha se beneficiado, que o medicamento não teve impacto ou que talvez
seus resultados tenham sido dificultados de alguma forma.
Até que tenhamos bons estudos que analisam os resultados de pacientes
que receberam esses medicamentos, em comparação com os que não os receberam,
devemos ser muito  cautelosos.
Eu iria mais longe e diria que há uma quantidade razoável de “quase” histeria e que
as pessoas acreditam que precisam ter esses remédios para sobreviver.
No passado as pessoas pensavam que precisavam de agentes de tratamento,
e esses agentes acabaram prejudicando a capacidade de sobrevivência dos doentes.
O prioridade deve permanecer em tratamento intensivo agressivo e na capacidade de
corrigir anomalias metabólicas, em vez de receber qualquer vacina mágica ou produto
que pode ou não melhorar as chances de sobrevivência.
Costumava haver uma crença, por exemplo, de que pacientes com sepse bacteriana
melhoravam acentuadamente que recebessem altas doses de esteroides.
Agora sabemos que eles podem ser prejudiciais em vez de benéficos.
Sabemos isso desde que fizemos estudos. Essa foi mais uma dessas coisas em que
as pessoas acreditavam “é, isso poderia ser”, mas quando fizeram o estudo 
randômicos em pacientes, constataram que na verdade os esteroides não tinham
qualquer efeito.

Dois ensaios clínicos próximos examinarão potenciais vacinas contra 
o Ebola. Além disso, diversas terapias experimentais estão sendo discutidos 
nos Estados Unidos e em outros países além do ZMapp. Como essas 
informações deveriam ser coordenadas? É necessário que haja uma entidade
para supervisionar isso?

Considerando que temos vários países, não sei se seria possível ter uma única entidade.
Já é suficientemente complicado ter o FDA [o órgão do governo americano que controla
medicamentos e alimentos] monitorando o que está acontecendo nos Estados Unidos.
É evidente que se você estiver falando de estudos canadenses ou produtos europeus,
eu não sei se existe qualquer entidade que possa oferecer esse tipo de coordenação.
Meu palpite é que a maioria  dos produtores está ciente do que os outros estão fazendo
e eles estão comparando resultados, porque  acreditam que é para seu próprio benefício
trabalhar em conjunto.

Um painel de ética da OMS afirmou recentemente que é ético ministrar 
tratamentos experimentais a pacientes de Ebola, mas ainda não especificou 
quem deve ter prioridade nessas circunstâncias ou como esses medicamentos 
devem ser distribuídos. Eles abordarão essa questão em uma reunião marcada
para esta semana. Qual é a sua opinião?

Acredito que certamente é ético estudar vacinas e substâncias biológicas experimentais, 
mas temos que ser extremamente cautelosos. Não é como se tivéssemos algo que já
sabemos que vai funcionar. Dizer que alguém está retendo produtos implica em que
sabemos que há um benefício, o que me faz hesitar porque ainda estamos muito, muito
longe de demonstrar que eles oferecem qualquer benefício em humanos.

Existe qualquer coisa que o senhor gostasse de acrescentar sobre os 
insights que obteve com seu atendimento dos pacientes com Ebola?
Espero que a principal coisa que as pessoas tenham apreciado é que havia muita
ansiedade, muitos comentários negativos sobre o fato de levarmos esses dois
pacientes para nossas instalações para tratá-los. A maior parte disso atribuímos à
falta de conhecimento e espero que, como tivemos sucesso em ajudá-los a
acabar com suas infecções, isso ajuda a dissipar a ideia de que essa é uma doença 
que, por natureza, tem que ser fatal. Como temos salientado o tempo todo,
acreditamos que os altos índices de fatalidades em parte do mundo em
desenvolvimento onde grassa essa doenças resulta da falta de recursos.
Sempre julgamos que a sobrevivência de pacientes com o suporte adequado seria
muito melhor que em países em desenvolvimento.
Esperaro também conseguir convencer o público que não precisamos ter muitas
infecções secundárias,  se seguirmos os procedimentos padrão de controle de infecções.
Tivemos 26 pessoas que deram assistência direta a esses pacientes e não tivemos
nenhuma infecção secundária, e isso é o que esperávamos.
Adotamos medidas para prevenir o contágio por contato ou gotículas.
Felizmente, não precisamos chegar ao nível de proteção usado na África ocidental
[usar aqueles macacões e capuzes protetores].
É preciso empregar o necessário para impedir que o sangue e secreções corporais entrem em contato 
com você, dependendo da quantidade de fluidos.
Usamos jalecos, luvas e proteções nos pés para evitar qualquer contacto com os materiais 
corporais desses doentes. Nossa abordagem a que o CDC recomenda: você usa uma
máscara facial  e óculos de proteção ou um escudo facial para evitar uma infecção.
Alguns enfermeiros que passavam de três a quatro horas nos quartos dos pacientes
se sentiram mais confortáveis usando capuzes protetores em vez de máscaras e escudos
faciais, embora esses também tivessem sido adequados. Podemos dispensar [alguns]
cuidados com chances mínimas de  disseminação secundária.
Não é como se tivéssemos trazido a peste para terras americanas.

Fonte:Scientific Americam Brasil

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